quinta-feira, 26 de março de 2009

O Grande Irmão está entre nós


Um dos livros que mais me marcou até hoje foi 1984, de George Orwell. Não é um livro grande - ou, pelo menos, não era, na edição de bolso que li - nem de leitura muito difícil. Pelo contrário, a história é envolvente, um thriller psicológico cheio de mistérios, que se passa num mundo futuro, pela época em que Orwell o escreveu (fim da década de 40): o ano de 1984.

O futuro concebido por Orwell é negro, e por isso 1984 é considerado uma distopia, juntamente com outros livros como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Nele, o mundo é dominado por governos totalitários que vivem em guerra, a sociedade é dividida em classes rígidas, e o patrulhamento ideológico é constante. As câmeras estão por toda a parte, as crianças são ensinadas desde pequenas a observar os pais e delatá-los para a "Polícia do Pensamento", colegas de trabalho, marido e mulher, todos são espiões em potencial.

As pessoas são lembradas, o tempo todo, de que "O Grande Irmão está observando" - o tal Grande Irmão é o líder supremo da Oceania, o continente que passa a englobar a Europa e parte da Ásia.

(Aliás, como todos sabem, foi desse Grande Irmão, o Big Brother, no original, que se originou o título do sensacional, espetacular e popular reality show.)

Fiz toda essa volta apenas para comentar que estão instalando câmeras de segurança no meu prédio. Na entrada, nos elevadores, e em toda a garagem - agora, há uma câmera virada diretamente para o meu carro.

A idéia me incomodou desde o princípio. Alegadamente, a motivação foram depredações pontuais ocorridas, em especial durante festas - um espelho do elevador quebrado, portas arranhadas, danos do gênero - e, é claro, questões de segurança. Devo frisar que moro aqui há 10 anos e nunca houve sequer tentativa de assalto. A garagem não tem aceso para a rua (fica a uns 10 metros de altura), e a única entrada são os portões, entre os quais está a cabine do porteiro.

O fato é que, na prática, muito pouco será ganho com a instalação das câmeras. Os episódios de depredação já haviam cessado depois que foram criadas regras mais rígidas para a realização de festas. E os assaltos continuam virtualmente inexistentes.

Em compensação, a privacidade vai para o beleléu. Sempre gostei de cantar no elevador, fazer careta para o espelho, ou mesmo de arrumar um sutiã fora do lugar, ajeitar a saia. Como fazer isso pensando que o porteiro pode estar olhando, e que tudo estará gravado?

Vá lá, elevador não é espaço privado propriamente dito, nem posso reclamar. Mas o meu carro!? Quantas vezes já não desci de casa com um nó na garganta, para desabar dentro do carro e não precisar dar explicações à minha mãe? Quantas vezes já fiquei no carro ouvindo música, bem alto, sem precisar incomodar ninguém, sozinha com os meus pensamentos, cantando junto a plenos pulmões? E aí?

Aos poucos, vão se reduzindo os espaços em que podemos ser livres. A câmera inibe. Sem dúvida, inibe os assaltos, inibe as condutas ilícitas, e etcetera e tal. Mas, na maior parte do tempo, inibe as simples manifestações de individualidade, aquelas coisas que, como diz a música (eu odeio Capital Inicial, mas a idéia é boa), "você faz quando ninguém te vê fazendo". Ou, no mínimo, quando ninguém te grava fazendo.

Quando a segurança vira paranóia, as primeiras a irem para o beleléu são as liberdades individuais.

* Coincidências aleatórias: eu nasci em abril de 1984. A história do livro se inicia em abril de 1984.