domingo, 28 de setembro de 2008

Vizinhos


A vida em sociedade se enquadra na categoria "mal necessário". Somos uns bichos gregários, dependemos uns dos outros, e nos amontoamos para sobreviver. Nas cidades, isso fica ainda mais relevante: o amontoamento é literal, e vivemos empilhados em caixotes.

Tanta proximidade exacerba um dos aspectos problemáticos da convivência coletiva, que é justamente a presença do outro, com seus hábitos e valores diferentes dos nossos. Uma das regras para o bom convívio é justamente procurar respeitar o outro - não impondo nossos hábitos de forma ostensiva - e tolerá-lo, aceitando alguma dose eventual de incômodo.

O problema é que não é fácil administrar esse precário equilíbrio, principalmente porque, hoje em dia, as relações entre vizinhos deixam de ser pautadas por qualquer tipo de amizade. O vizinho passa a ser apenas aquela pessoa que mora ali do lado, sem que se busque mais nada em comum. É muito mais fácil ser tolerante com um amigo, do que com um estranho; é muito mais fácil se preocupar em respeitar um amigo, do que um estranho. O resultado é que os conflitos de vizinhança afloram cada vez mais.

Toda essa introdução, só para poder reclamar dos meus próprios vizinhos. Moro num prédio que tem 18 andares, com 3 apartamentos em cada andar. Meus vizinhos de andar são pessoas ótimas, nunca tivemos qualquer desavença. Aliás, em 10 anos morando aqui, nunca tínhamos tido qualquer espécie de problemas de vizinhança. Isso, até a chegada do casal do andar de cima.

O casal do andar de cima é um casal jovem, embora sejam mais velhos que eu, um pouco. Moravam numa casa em cidade do interior, e é a primeira vez que moram em apartamento. E são pessoas animadas, que têm uma turma de amigos aqui em BH.

Logo que eles se mudaram, era festa toda sexta-feira. Nas primeiras semanas, nós toleramos bem. Pensávamos que era só o entusiasmo da casa nova, o apartamento tem uma bela varanda, e eles queriam aproveitar. O chato é que o barulho da varanda deles vai direto para o meu quarto, e eles costumavam falar alto, e até tarde. Mas tolerávamos, tolerávamos. Quando passavam um pouco dos limites, ligávamos para o porteiro, esperando que eles se acostumassem logo com a nova rotina.

Só que não se acostumaram, e as semanas viraram meses. O barulho se arrastava, o som alto, a conversa barulhenta, madrugada adentro - e não mais apenas nas sextas-feiras, mas até mesmo durante a semana, eventualmente. As ligações do porteiro no interfone já não surtiam tanto efeito. A gota d'água veio numa noite em que, depois de já termos pedido para abaixar o volume à 1h da madrugada, fui acordada às 3h com a clássica canção pop-teen-anos 80 "Lua de Cristal" sendo berrada a plenos pulmões por um bando de bêbados.

Isso gerou uma reclamação formal no Livro de Reclamações do condomínio, e uma advertência do síndico. E paz para nós.

Ou, pelo menos, paz até a última sexta-feira, quando novamente fui acordada à 1:30h, mas agora por "Ilariê". Nova intervenção do porteiro (que já está com tanta raiva deles quanto nós), nova reclamação ao síndico. E, espero, mais alguns meses de paz.

Várias reflexões poderiam ser feitas, aqui. O individualismo exacerbado. A falta de preocupação com o sossego alheio. A ausência de parâmetro da parte de quem nunca morou em apartamento. O impacto de vivermos pisando na cabeça de alguém, literalmente, ao morarmos empilhados.

Mas não adianta, o que realmente me intriga é: por que diabos esse pessoal gosta tanto da Xuxa?

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Rotina

Chega um momento em que a rotina se instala. Comodamente, ocupa o sofá e coloca os pés sobre a mesinha de centro. Não é uma visitante indesejada, ainda mais no caso de alguém que gosta de previsibilidade e estabilidade. Eu gosto da rotina.

O problema é o que ela vai se tornando.

Ela é a desculpa para a falta de notícias - "nada de novo, só a rotina de sempre"; para os desencontros - "ah, rotina atarefada, não pude ir encontrar vocês aquele dia"; para os esquecimentos - "no meio dessa rotina doida, acabei esquecendo seu aniversário!".

Em nome da rotina, o assunto vai rareando, as idéias se vão perdendo, as amizades se enfraquecem, e até o amor pode perder o brilho. É perigosa, a diaba. Paradoxalmente, ameaça exatamente a estabilidade que, em teoria, preserva.

Ou talvez não seja a rotina, mas o acomodamento. Talvez se coloque a culpa na rotina, sem que ela, coitada, tenha qualquer culpa no cartório. A rotina é só a repetição da seqüência de algumas atividades básicas - trabalhar, estudar, comer, fazer exercício, respirar, dirigir, subir de elevador. Mas se o tédio se instala na realização dessas tarefas, e nos interstícios, o que tem a rotina a ver com isso?

O que estraga não é a rotina, é a mesmice.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Gerundismo

Ando vivendo, mais que nunca, um dia de cada vez. Sorvendo devagar o mel de cada hora, e deixando-me levar pelo inesperado.

Ando cedendo aos meus impulsos de prazer, permitindo-me gozar da vida, parar por um momento e relaxar sentindo a brisa do fim da tarde, nesse tempo quente e seco que me irrita.

Ando escrevendo pouco, lendo pouco, pensando pouco, deixo que o corpo me conduza, e espero que a serenidade se instale - aos poucos.

Ainda em aporia, mas permitindo que o tempo traga as respostas.

Aumentando o som, para poder ouvir o coração.

Amando muito e sempre, e cuidando para que as borboletas amarelas não me escapem pela janela.

Ando apenas sendo, e aprendendo que é tão difícil ser. Eu, sendo, é.*

*Parafraseando Clarice em "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres".

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Aporia

No E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia assim define a aporia:

"[Do gr. aporia, “caminho inexpugnável, sem saída”, “dificuldade”.] 1. Dificuldade, impasse, paradoxo, momento de auto-contradição ou blindspot que impede que o sentido de um texto ou de uma proposição seja determinado.(...)
2. Como figura de retórica, a aporia diz respeito àqueles momentos em que uma personagem dá sinais de indecisão ou dúvida sobre a forma de se expressar ou de agir. O melhor exemplo é o célebre solilóquio de Hamlet, de William Shakespeare, consagrado na expressão “to be or not to be” (Acto III, 1).(...)"

O dicionário Caldas Aulete prevê três significados para a palavra "áporo":

1. problema insolúvel; situação sem saída;
2. uma espécie de inseto que cava a terra;
3. uma orquídea verde.

Fui atrás desses significados porque hoje me lembrei de um dos mais enigmáticos poemas de Drummond, "Áporo" - e agora vejo como ele facilmente se relaciona ao meu momento atual:

Áporo

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
"Áporo", sem poro, sem saída, cavando um buraco onde se esconder, por onde tentar fugir. Brotando em orquídea verde - que é flor e folha, indecisa sobre o que pretende ser.

Ando tendo sonhos persecutórios recorrentes. Mudam os personagens, mudam os lugares, mas se mantém a sensação de estar encurralada, cercada de perseguidores desconhecidos, poderosos e onipresentes. Permanece também a angústia de não ter para onde correr, não enxergar saída, e nem saber ao certo a razão da perseguição.

Como a orquídea verde, indecisa, em aporia. Como o inseto áporo, cavo um buraco cada vez mais fundo, a pretexto de procurar uma saída. Como num labirinto, perdida.

Como Hamlet:

"To be, or not to be, that is the Question:
Whether 'tis Nobler in the mind to suffer
The Slings and Arrows of outrageous Fortune,
Or to take Arms against a Sea of troubles,
And by opposing end them
"

É mais nobre padecer ou se rebelar? Mais nobre aceitar o destino, ou se insurgir contra o que ele reserva? Ser, ou não ser?

Aporamente me pergunto o que fazer.