terça-feira, 13 de maio de 2008

Desassossego

Andei relendo o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa em sua versão Bernardo Soares, o guarda-livros - que não é bem um heterônimo, mas um semi-heterônimo, nas palavras do próprio Pessoa ("não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade.").

É um livro sem uma ordem narrativa, ou mesmo poética, composto em fragmentos que podem ser lidos aleatoriamente, ou na forma em que são apresentados. Por essa razão, é uma leitura que eu classifico como fácil-difícil: fácil, porque a qualquer hora posso ler um fragmento isolado, de duas ou três páginas; difícil, porque as chances de conseguir efetivamente ler todos os fragmentos diminui na exata medida da minha desorganização mental.

Menciono o livro, porque, ao ler o Fragmento 260, encontrei a fonte de um trecho que me inspirou durante toda a adolescência, e de que ainda hoje me recordo em muitos momentos:

"O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é."

Partindo dessa reflexão, Pessoa ingressa em outro terreno, já explorado no clássico Autopsicografia ("O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente"): o de que a comunicação feita pela escrita é, essencialmente, mentirosa. Para incutir no leitor a emoção que atinge o escritor, este precisa fugir de si mesmo e descrever alguma outra situação menos específica de sua individualidade, que permita ao leitor, então, sentir o que ele, escritor, sente.

A idéia da incomunicabilidade sempre me incomodou. Aos 15 anos, descobri que havia uma solidão inevitável e essencial, algum lugar escuro dentro de mim que luz nenhuma poderia alcançar. Talvez por isso tenha me voltado à escrita, tenha me dedicado à palavra, na tentativa de comunicar ao Outro uma parte disso.

E o que vim descobrindo, como tantos antes de mim, é que a palavra é falha. A grande mentira da palavra, aquela que dizemos para inspirar no outro a emoção que sentimos, não alcança nunca o que realmente se passa no coração.

Mas é aí, no fim do discurso, aí onde as palavras não alcançam, que pode se dar o milagre do verdadeiro entendimento. Entendimento que não ilide a solidão mais profunda, que é a solidão da morte, mas que permite o encontro, permite nos iludirmos e pensarmos que aquele Outro nos entende, entende todas as coisas incomunicáveis.

O encantamento surge exatamente da incomunicação, e permanece porque é alimentado por tudo em nós que não se transmite. Projeto no Outro o que espero ali encontrar, e ele não pode desmentir. É a mentira que obsta o desespero, e permite florescer o amor.

Um comentário:

F. Gomes disse...

Posso atalhar sua sensibilidade poética com a minha verve intelectualesca patetóide? Depois prometo que retorno a conversa para os eixos. Essa coisa também tem estado no fundo de muitas inquietações minhas, desde nem sei quando. A comunicação é um evento extremamente improvável: primeiro, porque os sistemas psíquicos são perfeitamente isolados como consciência; segundo, porque não se pode garantir que a comunicação chegue intacta, se de todo, a mais pessoas do que as que se encontram presentes numa situação dada; terceiro, porque a obtenção do resultado desejado também é incerta, já que não há como assegurar que o receptor adote o conteúdo seletivo da informação como premissa de seu comportamento. Há um livro interessantíssimo de meu amigo Luhmann chamado exatamente "A Improbabilidade da Comunicação", em que ele diz que essa improbabilidade é o que faz com que os resultados da comunicação possível sejam tão importantes. O paradoxo dessa situação é que o que vai dentro de nossas mentes e corações só está lá por causa da comunicação, que é social, mas ao mesmo tempo é inacessível, em sua essência.
Um efeito curioso desse estado de coisas, e que me é particularmente agradável, é a eloqüência do silêncio. Você, por exemplo, quando está por perto, e por mais que se expresse lindamente, como o faz, não precisa dizer nadinha para mostrar a veemência de seu olhar.